terça-feira, 3 de agosto de 2010

Unidos ao nascer

Justiça inglesa julga se sacrifica uma
das
irmãs siamesas para salvar a outra

Ana Santa Cruz

Fotos Eduardo Queiroga/Ag. Lumiar
Fotos Eduardo Queiroga/Ag. Lumiar
Os gêmeos xifópagos de Pernambuco Charles e Charleu Tenório da Silva em três momentos: em 1973, recém-nascidos e ainda unidos pelo abdome e tórax; em 1974, depois da cirurgia de separação dos corpos comandada pelo médico Paulo Rabello, onze meses depois do nascimento; e na noite do sábado 2, no casamento de Charles (o último à dir.), no Recife

Charles Tenório casou-se no sábado 2, aos 27 anos, com a estudante Tatiana, no Recife. O casal espera um filho para março que vem e Charleu, gêmeo de Charles, foi o padrinho. O casamento teve para ambos um sabor de vitória sobre a adversidade, pois eles nasceram xifópagos. Ou seja, estavam ligados pelo tórax e abdome. Compartilhavam um único fígado e os dois coraçõezinhos eram colados pelo pericárdio, a membrana que envolve o órgão. Separados por uma cirurgia onze meses mais tarde, guardam como seqüela apenas uma cicatriz superficial e levam uma vida perfeitamente normal desde então. São casos de separação bem-sucedidos de irmãos siameses que tornam ainda mais doloroso o drama vivido atualmente por duas meninas na Inglaterra. Apelidadas de "Mary" e "Jodie", porque a Justiça inglesa não permite a divulgação de seus nomes, elas são também ligadas pela barriga, mas a situação dos órgãos internos é muito mais grave do que aquela dos irmãos Charles e Charleu. Só uma delas tem coração e pulmões e o cérebro com desenvolvimento normal. A solução proposta pelos médicos é sacrificar "Mary", a mais fraca, para salvar "Jodie". Mas os pais, imigrantes do Leste Europeu, recusam-se a permitir a cirurgia. São católicos praticantes e preferem deixar o destino das filhas nas mãos de Deus.

Religião não foi um problema na decisão de operar os irmãos pernambucanos. Eles são filhos de um motorista que teve 35 filhos em dois casamentos, dos quais dezessete sobreviveram, e nasceram na cidade de Arcoverde, a 260 quilômetros do Recife. O médico Paulo Rabello optou por fazer uma cesariana ao constatar que a gravidez era de gêmeos – mas só percebeu que se tratava de irmãos siameses ao nascerem. Exceto por estarem unidos pelo tórax e abdome, eram crianças saudáveis, pesando juntas 4,45 quilos. O mesmo médico tratou de reunir uma equipe multidisciplinar com quatro cirurgiões e comandou a operação de separação no mesmo hospital onde haviam nascido. A cirurgia dividiu em duas partes o único fígado existente (sem seqüelas, pois o órgão se regenera) e eliminou a adesão dos dois corações (o coração de Charleu é do lado direito). O trabalho cirúrgico durou três horas e quarenta minutos e teve um único momento crítico: um dos garotos sofreu breve parada cardíaca. Durante quase um ano eles permaneceram internados para garantir a recuperação. Depois foram adotados pelo médico Paulo Rabello, que já tinha quatro filhos. De temperamento calmo e brincalhões, Charles e Charleu têm gostos parecidos: adoram livros de suspense, principalmente os do americano Stephen King, gostam de cinema e são sócios em uma pequena empresa de softwares.

O nascimento de irmãos siameses ocorre com a freqüência de um para 200.000 partos. Por alguma razão, é mais comum o de meninas, na proporção de 3 para 1. São sempre gêmeos univitelinos – isto é, gerados num único óvulo e idênticos. A anomalia na divisão das células se dá de forma aleatória nas primeiras semanas de gestação. Nos casos em que os gêmeos compartilham órgãos como fígado, intestino, rins ou pulmões, a cirurgia para a separação de corpos tem maiores chances de sucesso. A separação é mais complicada quando um dos gêmeos atua como parasita do irmão, por não ter um ou mais órgãos. É o caso das irmãs "Mary" e "Jodie" e só há uma solução médica possível: sacrificar o mais fraco para tentar assegurar a sobrevivência do mais forte. O destino das gêmeas que nasceram no dia 8 de agosto num hospital de Manchester, na Inglaterra, é o centro de uma batalha judicial. De um lado da batalha jurídica estão os médicos do hospital, que lutam para realizar a operação e garantir a vida de "Jodie". De outro, os pais das meninas, que se negam a dar o sinal verde para o sacrifício de "Mary".

"Jodie" tem cérebro mais desenvolvido e funciona como máquina de sustentação para a irmã, que não possui coração nem pulmões. Por suportar dois corpos, os órgãos compartilhados funcionam no limite. O nível normal de oxigenação no sangue deve ficar acima de 90%, mas no caso das meninas atinge patamares críticos: na mais forte está em torno de 39% e na mais fraca é de apenas 21%. Com oxigenação tão precária, a cada dia que passa aumenta o risco de ocorrência de danos irreversíveis, principalmente no cérebro. Se permanecerem unidas, as duas sobreviverão poucos meses. Se forem para a mesa de cirurgia, "Mary" morre no momento em que os vasos que a ligam à irmã forem desconectados. É natural que qualquer pai hesite na hora de tomar a decisão de deixar morrer um de seus filhos, mesmo que para salvar outro. No caso dos pais dessas meninas, a questão é religiosa. Eles mudaram-se para a Inglaterra exatamente para ter melhor assistência médica no parto, que já sabiam seria difícil. O desfecho da história depende agora de decisão da Corte de Apelação. Nesta quarta-feira, os juízes anunciam se mantêm decisão de um tribunal de primeira instância que no dia 25 de agosto deu permissão para que os médicos operassem as meninas.

"Não podemos aceitar que uma de nossas crianças deva morrer para permitir que a outra viva", disseram os pais em comunicado escrito. "Acreditamos que nenhuma das meninas deveria receber cuidados especiais. Temos fé em Deus e queremos deixar que ele decida o que deve acontecer com nossas filhas." O que há de raro no caso em pauta na Inglaterra é o fato de a discussão ter ganho os tribunais. Casos envolvendo o sacrifício de um dos gêmeos são normalmente decididos pelos pais, sem publicidade nem a intervenção de médicos. O cirurgião pediátrico João Macksoud Filho, do Hospital das Clínicas de São Paulo, já participou de três cirurgias de separação de siameses. O caso mais parecido com o das meninas de Manchester que passou pela suas mãos não chegou à mesa de cirurgia. Por decisão dos pais, duas irmãs que dividiam um coração permaneceram internadas à espera de algum doador de coração para a menina acardíaca. As duas morreram antes de completar 1 ano. "Mesmo sabendo que o aparecimento de um doador de coração para bebês era virtualmente impossível, deixamos a decisão para os pais", explica João Macksoud Filho. "Cabe somente a eles decidir o que fazer, e os médicos não devem interferir de jeito algum."

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